Alguém neste país precisa dizer umas coisas ao torto e à esquerda.
Por Miguel do Rosário
Recentemente, a mídia caiu de pau em cima do Lula, entrevistando historiadores de baixo calibre, pelo fato dele ter se comparado a Vargas, a Jango, e a JK; políticos que viveram crises políticas terríveis em seus respectivos mandatos. Repetiu-se, à larga, que era um absurdo Lula comparar-se a esses "grandes". Peralá. Ninguém nega a importância desses três para a história nacional, mas Vargas foi um ditador que por pouco não se aliou à Alemanha nazista e prendeu, torturou e matou milhares de militantes políticos, inclusive o doce e sereno Graciliano Ramos.
Peralá. JK vendeu o país às petrolíferas estadunidenses, ao desmantelar todo o sistema ferroviário nacional, fator até hoje considerados um dos maiores desastres históricos do país: nos amarrou a um modelo absurdo de infra-estrutura para um país continental como o Brasil.
Lula, quando assumiu, prometeu construir ferrovias, mas percebeu que fazer trem e linhas férreas, começando quase do zero, requeria investimentos enormes inalcançáveis no momento ao Brasil. Eu também sempre achei que construir trem era relativamente barato e fácil, mas fiz umas pesquisas e constatei que, de fato, cada metro de linha férrea custa milhares de dólares. Por isso, será a China quem vai bancar o nosso trem, a partir de 2006 ou 2007, através das PPPs.
Outra do JK: foi ele que deu início à nova fase de endividamento externo do país. Brasília foi uma beleza, disso ninguém duvida. Mas na época ele era amaldiçoado pelas esquerdas por torrar todo o Tesouro Nacional ali, e ainda pedir emprestado lá fora, deixando o resto do país à míngua.
Peralá. Jango também foi importante, quis fazer as reformas e tal, mas todo mundo sabe que ele era muito mais de falar do que fazer. Mesmo o Darcy Ribeiro e Paulo Freire ficaram amarrados, sem conseguir deslanchar seus projetos. Além disso, foi bobo, irresponsável, não soube enxergar o golpe que se tramava debaixo de seu nariz, e que iria lançar o país nas trevas por 20 anos. A única coisa que Jango fez de "grandioso" foi casar com a filha de um latifundiário.
Outra coisa, nunca votei no PT por causa de ética que o partido propalava. Votei porque sabia que o Serra ia implantar a Alca, privatizar a Petrobrás a preço de banana (assim como fizeram com nossa saudosa Vale do Rio Doce); o mesmo Serra que hoje privatiza o uniforme escolar das crianças paulistanas. Sempre soube que o PT não era partido de santo; não existem santos em partidos; e já alertava para o fato de que, subindo ao poder, o deslumbre era inevitável.
Reuniãozinhas e panfletinhos
Com o PSDB no poder, nunca teríamos a oportunidade de vivenciarmos essa crise de agora, nunca teríamos acesso aos bastidores sombrios do poder, nunca o processo eleitoral seria questionado. Essa crise é importante, porque toca no nervo principal da democracia: a eleição. Sim, porque é preciso ganhar a eleição, porra! Agora, que apareceu esse lado podre da eleição, tem gente achando que o PT se vendeu por um "projeto de poder". Ora, se não é para atingir o poder, para que serve a merda de um partido? Para fazer reuniãozinha na sexta-feira no Buraco do Lume, ouvindo o Chico Alencar protestar contra as privatizações? Para distribuir panfletinhos na Estação da Luz com barriga vazia e sovaco fedorento?
Critica-se a estratégica "eleitoreira" do PT, e cai-se no mesmo erro: qual o sentido de um partido senão o de ganhar eleições para representar o povo que o elegeu? Parte da esquerda mostra uma grande nostalgia do tempo em que era apenas festiva, e ser do PT significava dançar e fumar um baseado em festinhas do Jardim Botânico, ou Vila Madalena, ou seja lá onde for. Agora, que ser do PT é assumir responsabilidades, sofrer ataques diários da imprensa, tomar decisões graves e, naturalmente, também errar, agora que chegou o tempo "dos fortes", como bem disse Tarso Genro, eles não querem mais ser do PT, e saem correndo com o rabo entre as pernas; tornam-se "petistas arrependidos"; e praguejam contra o PT por todos os brochinhos que comprou. Vão até para o PDT, como recentemente o professor Buarque. Sim, é o momento dos fortes.
É risível a comparação da Veja e do Globo de Lula com Collor, esquecendo que foram eles os maiores apoiadores da quadrilha de PC Farias. O Marcos Valério fez escola dentro do PSDB, arrecadando dinheiro para o Eduardo Azeredo na campanha de Minas Gerais, está provado e assumido pelo próprio Azeredo, em uma cena patética na TV. Valério era sócio dum figurão do PFL, também está provado, documentado e assumido. Os contratos de Valério com o governo federal têm quase 20 anos, tendo se ampliado muito no governo FHC. Continuou crescendo com Lula, até que estourou a crise. Ou seja, essa mamata de 20 anos vai finalmente terminar.
Quando? No governo Lula, cujos órgãos de investigação vinham farejando os rastros de Jefferson até que, este, percebendo o fim próximo e aproveitando-se da grande mancada de Lula (falar que dava um cheque em branco pra ele), resolveu partir pro ataque. Jefferson está desmoralizado. Descobriram que a corrupção que havia nos Correios era mesmo para o PTB. O erro principal de Lula e do PT foi achar que ainda corria um pouco de sangue político no PTB, e não apenas sangue verde de cobra viciada em dinheiro.
Sobre os críticos da esquerda que atacam Lula agora são os mesmos que sempre o atacaram. Só deixaram de atacá-lo na época de eleição, em que havia um irresistível clamor popular pela eleição de Lula, e depois em 2004 e início de 2005, quando o crescimento econômico e a geração de emprego foi um tremendo cala-boca.
Bornhausen e PSTU
Merval Pereira, o sofista-mor de O Globo, só fala em impeachment. Agora, encontrou uma tal de professora norte-americana que fala de impeachment na América Latina, e fica transcrevendo trechos do livro dela. A tentativa de produzir manifestação popular contra Lula é patética. No jogo do Brasil, havia lá uma família, com três ou quatro crianças segurando as letras "Fora Lula" e foi capa de todos os jornais; caricatural. No 7 de setembro, falou-se Lula foi vaiado: e mostra a cena na qual, curiosamente, não se escuta vaia nenhuma. Apurei o ouvido e nada: talvez um uuuuh baixinho lá no fundo, provavelmente de algum furioso do PSTU; militantes que não sabem fazer outra coisa a não ser ficarem furiosos, cuspindo quando debatem, cada vez mais parecidos com o Jorge Bornhausen. Ora, tenham dó, o "fora todos" dessa turma é de um primitivismo político digno de comédia de Miguel Falabella.
Não é só no Rio, o UOL, da elite paulistana, mantém em seus quadros uma "cientista" chamada Lucia Hippolito, primor de manipulação e desrespeito ao pensamento esclarecido. Está presa a uma casa mental em que cisma que o Lula é o "pior dos mundos" e o "mercado" é tudo de bom. Para quem não sabe, "casa mental" é um estado psíquico, onde o paciente nega-se a enxergar fora de determinada realidade, que só ele cria. No caso de dona Lúcia, ela enxerga coisas tão absurdas que não é necessário, para o leitor da Novae, nem comentários. A casa mental da dona Lúcia está ajoelhada nos interesses sórdidos do UOL, e sua família, que não se conformam com a vitória de um operário do ABC, contra a "intelligentia" do jardim Europa.
Uma das mais recentes da Dona Lúcia: "Acho que o presidente Lula encontrou em Severino quase uma alma gêmea. Lula está muito isolado, afastado... Severino e ele têm a mesma origem, são pessoas simples, que se entendem." (sic). Faça-me o favor, Dona Lúcia. Comparar Lula e sua história com Severino "mensalinho", cria do PSDB, é caso de processo. É chamar a todos nós de idiotas.
Falam que o governo Lula não tem projeto: ora, não tem porque eles não querem, porque não querem ver nada. Queriam Lula no alto de um palanque praguejando contra os Estados Unidos, como Chávez? Isso seria projeto? Ora, a Venezuela só tem petróleo e o Tio Sam é obrigado a engolir o Chávez porque precisa do petróleo deles, ainda mais nesse momento, em que brinca de guerra no Oriente Médio. O Brasil vende os mais diversos produtos para mais de cem países, o que o obriga a seguir um certo padrão internacional, em termos macro-econômicos(leia-se política fiscal austera), ou melhor, faz com que seja mais interessante para nós agirmos assim do que não. Ah, sim, se Lula decidisse prosseguir o desmonte do Estado iniciado por FHC, isso seria
"projeto de governo'.
E o software livre, não é projeto? Aliás, sobre isso, com alívio leio notícia na Agência Brasil que a Ministra Dilma Roussef enquadrou o Hélio Costa, que andou fazendo algumas declarações que causaram temor na comunidade do software livre. Os funcionários responsáveis já declararam que o software livre continua sendo uma prioridade do governo. Oxalá continue assim. Pressionemos.
Vigiemos.
A campanha pelo desarmamento, tão criticada pela direita, não é projeto? O Estatuto do Idoso, não é projeto? O aumento real do salário mínimo, não é projeto? A parceria com a China, Ìndia e países da África e oriente médio, não é projeto? A integração latino-americana, não é projeto?
E o apoio à agricultura familiar, não é projeto? Isso sim é reforma agrária: dar financiamento aos pequenos produtores, comprar a produção deles, garantir o preço mínimo, coisa que os grandes sempre tiveram, e que somente agora, depois de 500 anos, está chegando aos pequenos agricultores, os quais respondem por 70% da produção de alimentos no país. Só isso, se o governo Lula não tivesse feito mais nada, já valia o seu governo.
Se é bom, não é Lula
Afinal, que porra de PROJETO de governo que tanto cobram? Ah, já sei, queriam que o Lula lançasse um decreto assim: "a partir de hoje todos os brasileiros terão direito a um salário três vezes superior ao que ganham hoje; ninguém mais ficará doente ou deprimido; os bares serão desapropriados pelo governo e a cerveja será gratuita; os hospitais públicos serão reformados em 48 horas. Prefeituras e estados não precisam mais fazer nada, podem roubar à vontade, o governo federal se encarregará de tudo. Os impostos para classe média e empresários serão zerados. Os bancos serão atacados pelo governo, quebrarão, afinal ninguém suporta mais saber que os bancos têm lucros recordes. Então, falência neles! O governo, através do Tesouro Nacional, restituirá cada centavo depositado a cada cidadão, mais mil reais de brinde". Todo mundo ia ficar feliz, ainda mais depois que for aprovada a legalização e distribuição gratuita de maconha. Todos em casa, sem trabalhar, fumando um e vendo o William Bonner anunciar essas notícias maravilhosas.
Chega o Jô Soares e suas peruas da quarta-feira e elogiam o trabalho do Ministro da Justiça e do Pallocci, como se eles não fizessem parte do governo Lula. É assim: tudo que é bom, para eles, não faz parte do governo Lula.
O triste é que, desde 2003, após a posse de Lula, colocaram a pecha de neo-liberal no Pallocci e na política econômica, como forma de desconstruir Lula junto à esquerda. Quase conseguiram. E agora, com a crise, colhem os louros da estratégia. Os mesmos que criticaram a política econômica em 2003 mas calaram a boca em 2004 e início de 2005, com a retomada vigorosa do crescimento e do emprego, voltam agora a atacar a política econômica.
O PSTU chega ao cúmulo de continuar gritando "Fora FMI", mais de um ano depois que o governo Lula RASGAR (com toda elegância) o contrato com o FMI. Continua o superávit primário e os juros altos, tudo bem, também sou contra. Todo mundo é contra juro alto: até o Lula e o José de Alencar são contra. Mais dia menos dia, aqueles "retardadados" do Banco Central (conforme expressão de Maria da Conceiçao Tavares) vão tomar vergonha na cara e baixar os juros. Sobre o superávit, o culpado não é o Lula, o culpado é o FHC, que decuplicou a dívida interna, entregando pro Lula um abacaxi que está chegando a 1 trilhão de reais. C'est la vie, mon amie. Os caras tão fazendo o possível: reduziram a dívida externa a um mínimo; voltaram a captar emitir títulos públicos no exterior, a juros menores e prazos longos, de forma que o governo está conseguindo, pela primeira vez, financiamentos não-extorsivos lá fora. A tendência é aumentar, essa seria uma das lógicas para manter o superávit: ter credibilidade para pegar dinheiro lá fora.
O que é isso, companheiro?
Falta falar do Gabeira, que virou papagaio de madame, xodó do Jô e da Hebe Camargo, ídolo das lourinhas turbinadas da Mackenzie de São Paulo. Aqui no Rio, apoiou o César Maia, da ala mais reacionária do PFL, que só pensa em espancar camelô, escrever em seu blog contra o governo federal e sonhar com a presidência e o momento glorioso de transformar o Brasil num bordel luxuoso de um Estados Unidos decadente. Se pelo menos tivesse uma política voltada para o turismo, mas o pior é que nem isso... Bornhausen fala que o Lula não gosta de trabalhar, mas quem não gosta é o César Maia.
Tem outras coisas ainda que não entendo: por que a missão brasileira no Haiti é tão criticada? Trata-se de uma missão da ONU, votada por toda a comunidade internacional, com o objetivo de evitar uma guerra civil no país. Quem viu o filme Hotel Ruanda ou acompanhou as guerras civis na África sabe como é terrível uma guerra civil. Foi muito importante o Brasil chefiar a missão, quebrando a tradição de ser sempre os Estados Unidos a liderarem intervenção militar na América Central. O exército brasileiro sabe respeitar o povo haitiano e foi crucial durante as inundações que o país sofreu, ajudando a manter a ordem e a distribuir os alimentos. Não importa que o presidente tenha sido deposto por segmentos aliados ou não aos EUA, o que interessa é que o país precisava de apoio internacional para manter a ordem social, evitando o risco de genocídios. Sem contar que o Brasil é o maior defensor de que a comunidade internacional ponha dinheiro no Haiti para fomentar o desenvolvimento econômico do país. Lula em pessoa, em conferência internacional, pediu dinheiro para o Haiti.
Voltam até a falar no gasto com o Aerolula. Aí é demais. A própria Força Aérea já divulgou que a compra do Aerolula representou na verdade uma economia, pois aquela lata velha de antes gastava tanta gasolina que, em alguns anos, consumiria o equivalente ao preço de um avião novo. Além do mais, era uma lata velha perigosa: queriam ver uma comitiva de presidente, parlamentares, jornalistas, diplomatas, caindo no Atlântico? Seria uma ótima notícia para a imagem internacional do Brasil, sobretudo se considerarmos que somos um dos maiores exportadores mundiais de aviões... É muita mesquinhez.
A hora é de apoiar Lula e colaborar com a reconstrução do PT, único partido com força política suficiente para fazer frente ao PSDB e PFL. Depois que o PSTU conseguir eleger pelo menos um vereador em algum lugar do país, obtendo assim um mínimo de reconhecimento político e respaldo popular, pode querer apitar em alguma coisa. Sobre revolução, acho que, diante da atual conjuntura brasileira, a única revolução que presta é ler um bom livro, apoiar o software livre e agricultura familiar, produzir (e anunciar em) sites como a www.Novae.inf.br e ter dez reais no bolso para tomar uma cerveja e comer um PF.
O Brasil precisa de boas escolas públicas e melhores hospitais, isso sim, coisa que o PSDB de São Paulo, Geraldo Alckmin, está longe de fazer. O resto é totalitarismo já tentado e fracassado. Votarei em Lula novamente em 2006 e espero que os projetos importantes de educação e saúde sejam finalmente implantados em seu segundo governo; se não forem, ai sim ingressarei na oposição e vamos procurar um cara melhor para 2010. Agora, não sou eu que vou entregar o ouro para ACM Neto ser o novo ministro do Planejamento e o Bornhausen, ministro da Saúde, coisa que, pelo jeito, a extrema-esquerda quer com todas as suas forças, visando produzir uma saudável (a seu ver) turbulência social, que é o mais próximo de um ambiente revolucionário que a extrema esquerda tem condições de provocar. Turbulência essa que, naturalmente, seria feita às custas da fome do povo, que não é funcionário público e não pode filar uma bóia na casa da mãe (até porque é ele quem sustenta a mãe).
Do outro lado do espelho, os espectros direitistas dessa extrema-esquerda são o movimento "Basta" entre outros, liderados pelas distintas madames dos bairros nobres. São os sucedâneos da obsoleta TFP, que já estão botando suas asinhas de fora... como fizeram tão bem naquele fatídico abril de 64, quando as boas famílias do Rio e São Paulo fizeram passeatas contra Jango e a favor do golpe militar. Não se esqueçam que um dos lemas do golpe era "acabar com a corrupção".
Miguel do Rosário é escritor, colunista da Novae, editor de Arte & Política. Escreve para o blog: hellbar.blogspot.com. Miguel do Rosário lançou em março de 2005 o livro Contos para ler no Botequim, disponível no site do escritor.