Recentes decisões do pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a qual esfera da Justiça cabe o julgamento de determinados temas trouxeram à tona novas posições da corte que contrariam, em parte, o espírito da reforma do Judiciário promovida em 2004. Na semana passada, o ministro Carlos Britto afirmou, durante o julgamento de uma ação movida por uma ex-funcionária da Varig, que o Supremo tem agido de forma contrária à Emenda Constitucional nº 45, que ampliou consideravelmente a competência da Justiça do trabalho. A corte decidiu, por sete votos a dois, que não compete à Justiça do trabalho julgar execuções trabalhistas movidas contra empresas em recuperação judicial e nem decidir sobre a sucessão de seus débitos trabalhistas. Pouco mais de um mês antes, em 21 de maio, também o ministro Marco Aurélio manifestou-se no mesmo sentido durante o julgamento de uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) questionando a contratação de servidores não concursados pela administração público. Da mesma forma que na decisão tomada na semana passada, o Supremo entendeu que a Justiça comum seria a mais adequada para analisar o tema e, na prática, retirou da esfera trabalhista a função de julgar questões decorrentes, ainda que indiretamente, de relações de trabalho.
A Emenda Constitucional nº 45 deu uma nova redação ao artigo 114 da Constituição Federal, delegando aos juízes trabalhistas a competência para julgar ações referentes a relações de trabalho, e não apenas a relações de emprego - ou seja, aquelas regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A mudança fez com que muitos processos que até então tramitavam em outras esferas da Justiça migrassem para a Justiça trabalhista, mas não sem enfrentar resistência em disputas travadas no próprio Poder Judiciário.
A primeira discussão judicial envolveu a competência da Justiça trabalhista para analisar ações que pedem indenizações por danos morais e função de acidentes de trabalho. Questionado no Supremo, o novo texto constitucional ganhou interpretação diversa daquela entendida inicialmente - em março de 2005, a corte entendeu que esses processos deveriam permanecer na Justiça comum, apesar da Emenda Constitucional nº 45. Três meses depois, no entanto, mudou de posição e delegou-os novamente à Justiça trabalhista. "Foi uma vitória muito importante", diz Luciano Athayde Chaves, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Na opinião dele, a Justiça trabalhista, que conta com 24 tribunais e cerca de 1,3 mil varas, possui uma estrutura suficiente para ver ampliada sua competência de julgamento.
Apesar da vitória inicial, neste ano a Justiça trabalhista saiu derrotada no Supremo em duas oportunidades - ambas questões de impacto significativo, seja em número de ações, seja em reflexos das futuras decisões judiciais. A primeira delas foi o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) ajuizada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), na qual ficou decidido, em caráter liminar, que não cabe à Justiça trabalhista julgar questões referentes a servidores públicos. Apesar de a reforma do Judiciário ter estabelecido que as relações de trabalho envolvendo os servidores deveriam ser julgadas na esfera trabalhista, o Supremo entendeu que a demanda - que corresponde a milhares de ações nas instâncias inferiores da Justiça do trabalho - deveria migrar às varas estaduais e federais.
O entendimento do Supremo já começou a ser seguido no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Para o ministro Vantuil Abdala, decano do TST, há falta de conhecimento, por parte de ministros da corte suprema de que a atuação da Justiça do trabalho não mais se restringe aos litígios entre trabalhadores e empregados, mas abrange todas as ações decorrentes da relação de trabalho. "Mas com o passar do tempo, as novas atribuições da Justiça trabalhista serão admitidas pelo Supremo", diz o ministro. Segundo ele, o atual entendimento provoca prejuízo para os trabalhadores em relação à celeridade na tramitação dos processos, já que ela seria mais rápida na Justiça trabalhista. "A corte tem interpretado a Emenda Constitucional nº 45 quase de forma legislativa, restringindo a atuação na Justiça trabalhista", diz Wadih Damous, presidente da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ).
Também nas ações trabalhistas movidas por ex-funcionários da Varig, adquirida pela Gol durante o processo de recuperação judicial, o Supremo se posicionou de forma desfavorável à Justiça do trabalho. Os ministros decidiram, por maioria, que caberia à própria vara em que corre a recuperação - ou seja, a Justiça estadual - a incumbência de processar as execuções trabalhistas e decidir sobre a sucessão dos débitos trabalhistas pela empresa compradora. Os ministros Carlos Britto e Marco Aurélio, votos vencidos no julgamento, expressaram grande descontentamento com o restante da corte. "O pleno está dando uma interpretação restritiva à Emenda Constitucional nº 45", diz Marco Aurélio. Segundo ele, o deslocamento da competência de julgamento no caso Varig se deu por uma visão preconceituosa da Justiça do trabalho, pressupondo o erro de seus magistrados ao analisar o tema. Para o professor e jurista Arnold Wald, no entanto, a corte considerou não apenas os interesses imediatos dos ex-trabalhadores que pedem o pagamento de suas indenizações, mas a sobrevivência da empresa e a futura geração de empregos. "Por trás da simples delegação de competência está a tentativa de equilibrar a função social e econômica do direito", diz Wald.
Outro conflito de competência em que o Supremo terá que se posicionar em breve envolve as ações de cobrança de honorários advocatícios. Neste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou uma súmula determinando que a Justiça comum é a responsável pelo julgamento da matéria. Mas tramitam na Justiça trabalhista inúmeras ações do tipo, sob o entendimento de que quando o processo envolve um profissional do direto, e não um escritório de advocacia, a resolução deve se dar em âmbito trabalhista.