Em meio à crise da Operação Satiagraha, investigação que expôs dissidências na cúpula da Polícia Federal, um novo embate agita a corporação: delegados, agentes e escrivães revelam mal-estar e desconfianças ante a implantação do cartão de ponto - instrumento a que todos eles terão de se submeter, indistintamente.
A medida já é alvo de críticas e desfeitas das principais entidades de classe dos federais.
Os tiras, que tanto prezam a independência e a rua, têm horror ao que chamam de liberdade vigiada. Eles prometem resistir ao serão nas repartições. Na prática, alegam, bater cartão é um controle de fato, o que afronta hábito consagrado do policial e os nivela a burocratas.
Acham que a PF vai ficar com cara de fábrica, quem sabe de escritório comercial, em prejuízo das atividades externas como a prosaica vigilância de seus alvos.
A meta da direção-geral da PF é instalar o sistema de registro eletrônico de freqüência progressivamente em todas as unidades. “É mais uma ferramenta à disposição da administração, que permitirá uma melhor gestão de sua força de trabalho”, argumenta, por meio de sua assessoria, o delegado Luiz Fernando Correa, dirigente máximo da PF.
O primeiro passo será o cadastramento de todos os servidores. Correa se antecipou e, para dar o exemplo e estimular a tropa, teve suas digitais capturadas há dois meses, durante reunião com os subordinados que atuam no edifício-sede, em Brasília.
“Ainda não conseguimos vislumbrar como o cartão de ponto é conciliável com a atividade policial”, pondera Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, presidente da Comissão de Prerrogativas da Associação Nacional dos Delegados da PF. “O foco de uma gestão moderna é a produtividade. Temos de buscar critérios de aferição. A freqüência, muitas vezes, é cega. O servidor pode ficar das 8 horas da manhã até as 18 jogando paciência.”
Leôncio defende a adoção de métodos de avaliação do trabalho policial, com base na contagem de inquéritos concluídos e missões executadas, incluindo buscas e prisões. “Estamos com dificuldades para entender como isso vai ser operacionalizado sem violar as características da atividade policial. O sistema de cartão é utilizado para servidores que têm jornada fixa. Naturalmente não será adequado às peculiaridades da função policial. Trabalhamos ininterruptamente, somos remunerados pelo regime de subsídio. O policial não teria como ser compensado financeiramente em caso de extrapolar a carga horária. É como acontece com o procurador e com o juiz que levam trabalho para casa, trabalham 24 horas por dia.”
IR E VIR
“Esse controle, a par de ilegal, pretende retirar do policial federal sua liberdade de agir, ir e vir, típica da função”, protesta Amaury Portugal, presidente do Sindicato dos Delegados da PF em São Paulo, onde está o maior efetivo do País, com cerca de 400 delegados em todo o Estado. “Não importa a nomenclatura usada, seja controle de freqüência ou ponto, o que se afigura é a liberdade vigiada do policial. É coisa de grupo escolar, desmoralizante. Delegado é função de Estado. É o mesmo que fazer um embaixador assinar ponto.”
“Esse mecanismo não é compatível com a função policial”, reitera Marcos Leôncio. “Vejamos: o policial é deslocado para uma operação fora de seu Estado e passa de 3 a 4 dias ausente da repartição de origem. Ou seja, durante esse período não vai bater o ponto. Como é que fica?”
“A questão toda é a legalidade ou não dessa medida”, observa Marcos Vinício Wink, presidente da Associação Nacional dos Policiais Federais. “De repente pode ser um ato legal , mas é contraproducente para a polícia. Daí a pouco os colegas vão aceitar, vão bater ponto de saída às 18 horas e vão dizer ‘tchau, não me chamem para trabalhar à noite’. Vai virar confusão.”
A assessoria de Luiz Fernando Correa assinala que o objetivo é melhorar a gestão da força de trabalho da PF, informação importante para melhor dimensionamento das necessidades da instituição. “Ao contrário do que alguns imaginam, não se visa pelo sistema a uma rigidez de horário em atividades tão específicas, caso dos trabalhos externos, tão comuns à atividade policial”, garante a direção-geral. “Outro objetivo é incrementar a segurança das unidades.”
O fantasma dos cartões pode ir parar na Justiça, alerta o delegado Portugal. “A administração central tenta impedir o livre exercício da função policial, agredindo a própria legislação que nos elege como de atividade de dedicação exclusiva, policiais por 24 horas. Esse controle, além de nos subtrair a liberdade, abre o direito às horas extras e adicionais noturnos, o que ensejaria uma chuva de ações judiciais.”