quinta-feira, 27 de março de 2008

Faça-se a luz


A alegação de que o leilão de privatização da Cesp fracassou pela somatória da crise financeira dos EUA, como disse o governador de São Paulo, José Serra, com incertezas regulatórias não resolvidas pelo governo Lula, a versão do ex-presidente Fernando Henrique, é tão crível quanto dizer que a iluminação da rua depende do poste.

O leilão fracassou porque do conjunto de usinas hidrelétricas da Cesp, estatal paulista que Serra pretendia privatizar, a concessão das duas maiores, Ilha Solteira e Jupiá, responsáveis por 70% da energia gerada por ela, vence em 2015 e já havia sido renovada uma vez. Pela legislação aplicável ao setor, após a segunda renovação a propriedade do ativo reverte à União.

Essa é a lei. Não há indefinição regulatória, muito ao contrário: a regra é clara, vem de longe e é estável. O problema é que a área técnica do governo paulista, especificamente a Fazenda e a pasta de Energia, não deram tratos à bola, encomendando a avaliação para o estabelecimento do lance mínimo pelas ações de controle da Cesp em poder do estado como se a renovação das concessões fosse ou um problema do comprador ou um dado sem influência no preço.

Conhecido pela dedicação às questões técnicas até mais que aos minuetos da política, estando nesse perfil sua maior diferença em relação ao colega Aécio Neves, com quem disputa a legenda do PSDB para tentar a sucessão de Lula em 2010, Serra também deixou passar como de somenos a contingência legal das concessões.

Prova disso é que a renovação da concessão de Porto Primavera, um outro ativo valioso do parque de usinas da Cesp, que venceria pela primeira vez este ano, só foi pedida quando já estava publicado o edital de privatização. Seria fácil ao governo Lula, se tivesse a intenção de prejudicar o mais sério pretendente à sua sucessão com base no que dizem as pesquisas de intenção de voto, arrastar pelas salas da burocracia a renovação de Porto Primavera. Não o fez, e a concessão foi prorrogada por outros 20 anos.

Tão logo o edital foi publicado em 25 de fevereiro, marcando para dois meses depois o leilão, as empresas virtualmente interessadas já alertavam para a inconsistência do preço mínimo de R$ 49,75 por ação, dando para São Paulo uma receita de R$ 6,6 bilhões e fazendo a privatização global custar cerca de R$ 22 bilhões, incluindo as dívidas da estatal e a compra das participações minoritárias. Não foi por falta de aviso, portanto, que Serra colheu um fracasso.

Frustração política
A frustração deverá repercutir sobre a corrida presidencial — e não só porque Serra deixa de pôr a mão numa dinheirama grossa que lhe garantiria uma baciada de obras daqui até 2010. A sua imagem de político técnico, obcecado com os detalhes, também sai rachada, e é nela que se sustenta o seu maior capital político.

O alerta dos compradores potenciais foi tomado como jogada para baixar o preço, comprar a Cesp na “bacia das almas”, como disse o governador. Alegou também que os interessados tiveram dificuldade para fechar o pacote de financiamento devido à queda do crédito na esteira da crise bancária nos EUA. O fato é real, mas não foi por isso que pelo menos dois dos grupos interessados desistiram, além do que havia a oferta do BNDES de financiar o comprador.

Tempo para recuar
Serra ainda teve tempo de recuar duas semanas atrás ao sair do gabinete de Lula com a renovação de Porto Primavera e a informação de que as concessões a vencer em 2015 dependem de mudança na lei, e isso se for o caso de mudá-la. Se não o fez, provavelmente não soube recuar. Ele se informou sobre o caso das concessões perto do leilão e o discutiu com um interlocutor externo nos últimos dias.

Não haverá seqüelas
Os cinco grupos inscritos para o leilão tinham interesse real na aquisição, mas entraram na expectativa de que algo mudasse. Sem a garantia da prorrogação das concessões a vencer, a avaliação da Cesp com base no fluxo de caixa trazido a valor presente só faria o negócio viável se o preço mínimo fosse 50% menor, por aí.

É preciso refletir sobre o ocorrido. Os apressados já dizem que o setor está em alerta e que as incertezas sobre as concessões podem afugentar os investidores. Bobagem. O leilão da Cesp deixou claro que há pelo menos cinco grandes grupos com disposição e caixa para investir no setor. Não o fizeram na Cesp pelo preço, não por medo.

É fato que há um lote grande de concessões a vencer até 2015, com os direitos de exploração voltando à União. A maioria é de usinas de empresas estatais federais, como Chesf e Furnas. Mas isso não é acidental, apenas um capricho dos tempos. Foi dos anos 1970 a 1980 que o país mais investiu em infra-estrutura. Com 20 anos mais 20 na primeira renovação, elas chegam ao tempo de maturação do regime de concessão. O que fazer daqui para a frente é questão em aberto.

Uma hipótese é prorrogar as concessões atuais, o que implica não aumentar a tarifa. O investimento inicial já foi 100% amortizado. A outra é levá-las a leilão, abrindo um novo ciclo de concessão, o que impactará as tarifas para permitir ao comprador se ressarcir.

Nada disso se confunde com a concessão das novas usinas, como as de Santo Antonio, já licitada, e de Jirau, em processo, com prazo de trinta anos. A regra é clara e não afugentou ninguém.

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