No início de março último o presidente Lula travou polêmica com o presidente do STF, ministro Marco Aurélio de Mello, criticando-o. A crítica presidencial decorreu da sugestão, feita pelo juiz, de que a oposição ingressasse com uma ação na corte por ele comandada contra o programa "Territórios da Cidadania", do governo federal. À época, o presidente comentou sobre o ministro Marco Aurélio que "se ele quiser ser político, renuncie lá e se candidate a um cargo para falar as bobagens que quiser, na hora em que quiser, mas não fique se metendo na política do Poder Executivo". Como sói ser, Lula sofreu ataques da oposição, que se postou como defensora do Poder Judiciário perante o que seria um arroubo autoritário do chefe do governo. Na realidade, nesse episódio o presidente da República estava coberto de razão, pois juízes não devem se meter em política - isto é papel dos políticos (estejam eles no Legislativo, no Executivo ou apenas nos partidos) e dos cidadãos comuns. Detentores de cargos públicos no âmbito do sistema de justiça - juízes e promotores - devem se abster de opinar publicamente sobre temas que sejam objeto da disputa político-partidária.
O que vale para membros do sistema de justiça é ainda mais verdadeiro para subordinados do presidente que ocupam postos na burocracia de Estado. A estes, no exercício de seus cargos, não cabe criticar a política do governo, mas cumpri-la - algo ainda mais crucial em se tratando daqueles que, pela natureza de sua função, sequer podem possuir filiação partidária, como é o caso dos militares. São estas circunstâncias que tornam tão grave o ato de indisciplina do general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que decidiu criticar publicamente uma política do governo ao qual é subordinado. De nada adianta aqui apelar à idéia - equivocada - de que o general não é subordinado ao governo, mas ao Estado, e pode assim defender posições que, ao seu juízo, coadunam-se com a defesa dos interesses permanentes da nação, como a preservação da soberania. O equívoco de tal suposto se deve a dois motivos. Primeiro, ao fato de que é o governo do dia que conduz os negócios de Estado, de maneira que a política do Estado é, na conjuntura, definida de forma legítima pelo governo do momento. Questionamentos a essa condução precisariam provir de fontes politicamente legítimas, como a oposição ou os cidadãos. E a burocracia militar, mesmo em seus mais elevados escalões, não dispõe de tal legitimidade.
O segundo motivo para o equívoco é o fato de que não cabe a subordinados burocráticos do chefe de Estado e de governo questionar suas opções políticas. Uma exceção parcial vale para aquelas categorias às quais é permitida a sindicalização. Tal direito, de que desfruta a maior parte das categorias do funcionalismo público, é um indicativo de que a elas é permitido, no exercício de suas funções, um grau de liberdade política similar ao dos demais cidadãos, pois isto é consentâneo com um regime democrático, no qual o conflito é não apenas admissível, mas bem-vindo. Militares não possuem tal direito justamente porque em seu caso a intervenção na cena política, em vez de positiva, é deletéria à democracia. A esse respeito as histórias de nosso país e da América Latina oferecem fartas evidências.
Disciplina é essencial para o meio militar
Em resumo, aos militares, que pela própria natureza de sua função pública controlam recursos de violência, não é admissível numa democracia a sindicalização, a filiação partidária e, conseqüentemente, a intromissão em assuntos da política nacional. A eles cabe cumprir as ordens recebidas, como, aliás, reza a própria idéia de disciplina, tão cara à corporação armada. Por todas essas razões, a opção que fez o governo por uma reprimenda reservada ao insolente comandante da Amazônia mostrou-se uma alternativa desejável, se considerado o cenário de curto prazo, no qual importa arrefecer os ânimos. Contudo, pode-se mostrar problemática no médio e longo prazo, pois nada assegura que novas insubordinações ocorram. São preocupantes nesse sentido as invectivas feitas pelos comandantes dos militares de pijama, os reservistas Gilberto de Figueiredo e Ivan Frota. O primeiro cobrou de Lula que desse a Heleno tratamento similar ao dispensado a seus ministros quando discordam da política econômica adotada. A comparação não poderia ser mais inadequada, já que ministros ocupam postos políticos e deles se esperam posições políticas, algo muito diferente do que poderia pronunciar um membro da alta burocracia militar. O segundo foi mais longe, ameaçando com um levante castrense caso o presidente insistisse no enquadramento disciplinar de seu subordinado. Nada mais incompatível com a hierarquia, que deve valer na relação entre comandantes e comandados.
Eleições no paraguai
As eleições paraguaias deste final de semana trazem sinais distintos. Por um lado, representam um imenso avanço político, pois o regime paraguaio passou pelo mais decisivo dos testes a que precisam ser submetidas as democracias: a alternância no poder. O Paraguai experimenta neste momento um processo similar àquele pelo qual passou o México, recentemente. Deste ponto de vista, pouco importa quem sai vencedor da disputa, contanto que seja um opositor ao partido hegemônico - ou partido de Estado, como denomina o PRI mexicano o cientista político Adrián Gurza Lavalle. No caso paraguaio, aliás, pode-se afirmar sem maior titubeio que se trata de um partido de Estado, tal o controle que as máquinas políticas coloradas têm sobre o aparato estatal do país vizinho - o que pressagia sérias dificuldades ao presidente eleito, Fernando Lugo.
Por outro lado, o novo presidente dá alguns sinais que podem se mostrar preocupantes para a própria democracia paraguaia e para a estabilidade política da região. Caso confirme que seguirá os passos de alguns de seus colegas sul-americanos, como Hugo Chávez e Rafael Caldera, o nível de acirramento político interno pode ser tal que o recente avanço democrático pode rapidamente caminhar para um retrocesso. Todavia, os sinais nesta frente são ambíguos, pois o próprio Lugo já sinalizou que estaria a meio caminho entre Chávez e Lula ou Bachelet, além de já ter compreensivelmente iniciado um discurso mais ameno do que aquele que animou sua campanha. Seu maior desafio será governar num estado cleptocrático: segundo a Transparência Internacional, hoje o Paraguai é o 41º país mais corrupto do mundo numa lista de 179 - por enquanto melhor que Venezuela e Equador, respectivamente 17º e 29º do ranking.
Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP