Psicóloga, subsecretária de Captação de Recursos e ex-secretária de Estado de Trabalho do Distrito Federal
A paz vai além das bandeiras brancas e armistícios. A lição vem do prêmio Nobel da Paz concedido este ano a Muhammad Yunnus, o criador do programa de microcrédito, revolucionária idéia na guerra que o mundo trava contra a fome e a miséria. Trata-se de programa tão importante que permite reflexões.
Essa poderosa arma de combate à pobreza vem-se desenvolvendo desde 1976, quando Yunus, professor de economia de Bangladesh, emprestou U$ 26 a um grupo de mulheres fabricantes de cadeiras de bambu que não conseguiam se livrar de agiotas. Elas pagaram o empréstimo na data certa. Daí surgiu a concepção do microcrédito — créditos de pequeno valor, direcionados à produção de bens e serviços, disponibilizados de forma ágil e desburocratizada, com baixa ou nenhuma exigência de garantias.
O modelo de crédito criado por Yunus está implantado em 65 países, inclusive no Brasil, desde o final da década de 70. Em 2002, tivemos a oportunidade de entregar pessoalmente ao criador do microcrédito o relatório de atividades do programa executado no Distrito Federal durante a realização do Microcredit Summit, em Nova York. Ele disse sentir-se orgulhoso de a idéia ter cruzado fronteiras e estar sendo aplicada com êxito no Brasil. O Distrito Federal foi um dos pioneiros na implantação desse tipo de programa. Em 1986, criou o programa Aqui Tem, atualmente chamado de Creditrabalho.
Experiências pioneiras como a União Nordestina de Apoio a Pequenas Organizações (UNO), com sede em Recife, e o Banco da Mulher, em Salvador, devem ser lembradas. Os organismos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ) iniciaram seu apoio na mesma época. Um dos primeiros beneficiários foi o Centro Ana Terra, no Rio Grande do Sul, que, por sua vez, veio a constituir-se a Federação de Apoio aos Pequenos Empreendimentos.
O microcrédito provocou uma revolução no sistema financeiro do Brasil. Os agentes repassadores deixaram de ser exclusivamente os bancos convencionais e, agora, são agências de fomento, organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip), organizações não-governamentais (ONGs), sindicatos, cooperativas de crédito e sociedades de crédito ao microempreendedor (SCM), entre outras.
Estudos da OIT revelam que, no Brasil, cerca de 11 milhões de pessoas podem ser clientes de programas de microcrédito. No Distrito Federal, perto de 100 mil microempreendedores estão prontos para serem beneficiários de programas de crédito produtivo. Entretanto, ainda é necessário promover ajustes nas condições legais e operacionais para a expansão do microcrédito em moldes produtivos.
O programa Creditrabalho beneficiou mais de 20 mil microempreendedores, gerando aproximadamente 40 mil ocupações, com liberação de R$ 85 milhões desde a criação. Mas é preciso ampliar a oferta de crédito também pelo terceiro setor — ONGs e Oscips — a fim de atender a demanda reprimida de microprodutores, que continuam excluídos do acesso ao crédito.
Diante da redução dos empregos formais e da expansão do trabalho por conta própria, programas de microcrédito começam a cumprir seu papel estratégico de promover novo modelo de desenvolvimento, justo e inclusivo, não assistencialista, que não faz transferência de renda, mas credencia o cidadão a ser o próprio empregador e a criar ocupações a partir do trabalho e da produção.
O microcrédito é hoje instrumento de grande alcance, capaz de desencadear mudanças sociais, melhorar a distribuição de renda, gerar empregos, criar negócios e desenvolver a economia local. É gratificante concluir que, ao acompanhar a idéia de Yunnus, estávamos no caminho certo. Implantar programas de microcrédito no Brasil, naquela época, sem muitos parâmetros para serem seguidos e avaliados, foi um desafio. É por isso que a vitória da idéia de Yunnus é também um pouco o êxito dos seguidores.
Muhammad Yunus criou arma diferente para enfrentar a guerra que mata mais do que qualquer combate: a miséria. Em vez de disparar balas mortíferas, libera recursos para que os pobres e excluídos possam ter dignidade e cidadania, melhorem a qualidade de vida das famílias e, o que é mais importante, adquiram autonomia, gerando emprego e renda para si próprios e para suas comunidades. Essa é a verdadeira luta pela paz