Brasil-Venezuela
Em Londres, Lula se refere a Hugo Chávez como “parceiro de bons negócios” e se distancia das afinidades políticas. Atrito com Senado brasileiro sobre cassação de TV realça divergências crescentes
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurou ontem enterrar a troca de acusações iniciada na semana passada entre o governo de Hugo Chávez e o Congresso brasileiro. Em Londres, em entrevista ao programa de TV Hard talk, da BBC, ele ressaltou que o mandatário venezuelano “é um parceiro do Brasil” e “não representa perigo para a América Latina”. Apesar da postura conciliatória, Lula deixou claro que a relação com a Venezuela avança na senda do pragmatismo econômico e se afasta do discurso ideológico que marcou o primeiro mandato. “Chávez tem sido um parceiro do Brasil”, disse Lula. “Nós temos grandes negócios na Venezuela, estamos fazendo refinarias conjuntas.”
Essa espécie de polarização política, que não significa necessariamente confrontação, fica cada dia mais evidente. E revela duas visões de mundo bastante distintas. Chávez e Lula não se entendem sobre temas centrais da integração sul-americana (leia quadro). O editorial de ontem do diário britânico The Guardian captou parte desse espírito, ao opinar que Chávez “vem animando muita gente de esquerda com sua dramaticidade, mas é o multilateralismo impulsionado por Lula que fará mais para mudar o mundo”.
Intitulado “Duas visões de progresso”, o editorial traça semelhanças entre os dois: “São progressistas radicais reeleitos pelos pobres, em sociedades marcadas pelas terríveis diferenças de oportunidade”. Mas ressalta que “Lula se envolveu com o sistema político internacional, ao invés de desafiá-lo”. Nesse sentido, os Estados Unidos surgem como ponto de inflexão entre as diplomacias de Brasília e Caracas. Lula marcou essa diferença ao comentar à BBC que “Chávez tem suas razões para brigar com os Estados Unidos, e os Estados Unidos têm suas razões para brigar com a Venezuela”, mas “o Brasil não tem nenhuma razão para brigar com os Estados Unidos ou a Venezuela”.
Questionado se hoje na América do Sul havia dois modelos políticos e econômicos — um de Chávez e outro de Lula — disputando espaço e áreas de influência, o presidente afirmou que o importante é as nações sul-americanas terem crescimento econômico. “O sonho da América Latina é que todos cresçam economicamente, façam distribuição de renda e melhorem a vida do povo. É assim que pensa o presidente Kirchner, é assim que pensa o presidente Chávez, é assim que pensa o presidente Lula”, resumiu.
Descompasso
Mas, enquanto o ex-sindicalista pondera sobre liberdade de imprensa e soberania, o militar radicaliza e se diz alvo de seguidos planos de magnicídio, supostamente arquitetados por Washington, mas sobre os quais nunca apresentou provas. Ao desembarcar em Nova Délhi, na Índia, Lula expressou o desejo de que a polêmica entre Chávez e o Congresso brasileiro seja resolvida logo. Na semana passada, o presidente venezuelano chamou os parlamentares de “papagaios de Washington”, em resposta ao pedido formal aprovado pelo Senado para que Chávez renovasse a licença da emissora RCTV.
Ao justificar o comentário, o mandatário venezuelano disse que apenas havia respondido a uma “grosseria”. Para Lula, não houve grosseria. “Eu não vi nada disso ontem (nos jornais). Eu fiz a resposta e vamos ver o que vai acontecer. Eu acho que o Congresso não foi grosseiro, porque a nota do Congresso pede a compreensão, apenas”, argumentou Lula, reafirmando que não vai procurar Chávez para tratar do assunto. “Deixa eu voltar ao Brasil. Há muita coisa que pode ser feita (para não complicar as relações)”, afirmou.
Na tribuna do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) voltou ao assunto, ressaltando que a defesa da democracia não pode ter fronteiras. Já os líderes do PSDB, Arthur Virgílio (AM), e dos Democratas, senador Agripino Maia (RN), anunciaram em plenário que os dois partidos vão determinar a obstrução da votação do protocolo de adesão da Venezuela ao Mercosul, que está em tramitação, caso Chávez não se retrate publicamente.
As diferenças
Principais discordâncias públicas entre Brasília e Caracas
Integração regional
Chávez embarcou no Mercosul mas defende sua transformação em união política. Já falou em “enterrar” o bloco comercial, que a diplomacia considera como alicerce do processo de integração continental
Etanol
O presidente venezuelano fez coro prontamente a Fidel Castro nas críticas ao acordo Brasil-EUA para expandir a produção de biocombustíveis na América Latina, alegando que condenaria “milhões” à fome no mundo
Banco do Sul
O governo brasileiro mantém sua reticência a apoiar a iniciativa de Caracas pela criação de uma instituição regional para fomentar o desenvolvimento, missão que se sobrepõe à de instituições como o BNDES
Estados Unidos
Enquanto Chávez aposta no confronto com Washington, reeditando uma visão de mundo bipolarizada, Lula se mantém fiel a uma diplomacia multipolar, em que há lugar para relações amistosas com pólos conflitantes entre si
Bate-boca na OEA
A 37ª Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) se transformou ontem em campo de batalha entre Estados Unidos e Venezuela. A secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, solicitou o envio imediato de uma missão a Caracas para investigar o episódio da não renovação da concessão da emissora privada RCTV. O gesto da secretária foi interpretado pelo chanceler venezuelano, Nicolás Maduro, como “intervencionismo inaceitável” de Washington.
“Pedimos ao secretário-geral que viaje para a Venezuela para consultar todas as partes e apresentar um relatório completo”, sugeriu Rice. “A intervenção da representante dos Estados Unidos constitui um intervencionismo inaceitável nos assuntos internos de uma república democrática e soberana”, respondeu Maduro. Em seguida, ele pediu “respeito” e sugeriu que a OEA crie uma comissão especial “para estudar a violação diária dos direitos humanos nas fronteiras do sul dos Estados Unidos”, em referência à construção de um muro na divisa com o México.
A tréplica não demorou. “Em qualquer assunto, estou certa de que será difícil para qualquer comissão debater, investigar e criticar mais as políticas dos Estados Unidos do que já se faz todas as noites na CNN, ABC, CBS, NBC e em vários canais americanos menores”, provocou Rice. Ela argumentou que nos EUA “os cidadãos têm a garantia de uma imprensa livre e independente”, e concluiu: “Isso é democracia”. A secretária abandonou a sessão, sem ouvir a estocada seguinte de Maduro, sobre violações dos direitos humanos na base americana de Guantánamo, em Cuba.
Em Londres, Lula se refere a Hugo Chávez como “parceiro de bons negócios” e se distancia das afinidades políticas. Atrito com Senado brasileiro sobre cassação de TV realça divergências crescentes
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurou ontem enterrar a troca de acusações iniciada na semana passada entre o governo de Hugo Chávez e o Congresso brasileiro. Em Londres, em entrevista ao programa de TV Hard talk, da BBC, ele ressaltou que o mandatário venezuelano “é um parceiro do Brasil” e “não representa perigo para a América Latina”. Apesar da postura conciliatória, Lula deixou claro que a relação com a Venezuela avança na senda do pragmatismo econômico e se afasta do discurso ideológico que marcou o primeiro mandato. “Chávez tem sido um parceiro do Brasil”, disse Lula. “Nós temos grandes negócios na Venezuela, estamos fazendo refinarias conjuntas.”
Essa espécie de polarização política, que não significa necessariamente confrontação, fica cada dia mais evidente. E revela duas visões de mundo bastante distintas. Chávez e Lula não se entendem sobre temas centrais da integração sul-americana (leia quadro). O editorial de ontem do diário britânico The Guardian captou parte desse espírito, ao opinar que Chávez “vem animando muita gente de esquerda com sua dramaticidade, mas é o multilateralismo impulsionado por Lula que fará mais para mudar o mundo”.
Intitulado “Duas visões de progresso”, o editorial traça semelhanças entre os dois: “São progressistas radicais reeleitos pelos pobres, em sociedades marcadas pelas terríveis diferenças de oportunidade”. Mas ressalta que “Lula se envolveu com o sistema político internacional, ao invés de desafiá-lo”. Nesse sentido, os Estados Unidos surgem como ponto de inflexão entre as diplomacias de Brasília e Caracas. Lula marcou essa diferença ao comentar à BBC que “Chávez tem suas razões para brigar com os Estados Unidos, e os Estados Unidos têm suas razões para brigar com a Venezuela”, mas “o Brasil não tem nenhuma razão para brigar com os Estados Unidos ou a Venezuela”.
Questionado se hoje na América do Sul havia dois modelos políticos e econômicos — um de Chávez e outro de Lula — disputando espaço e áreas de influência, o presidente afirmou que o importante é as nações sul-americanas terem crescimento econômico. “O sonho da América Latina é que todos cresçam economicamente, façam distribuição de renda e melhorem a vida do povo. É assim que pensa o presidente Kirchner, é assim que pensa o presidente Chávez, é assim que pensa o presidente Lula”, resumiu.
Descompasso
Mas, enquanto o ex-sindicalista pondera sobre liberdade de imprensa e soberania, o militar radicaliza e se diz alvo de seguidos planos de magnicídio, supostamente arquitetados por Washington, mas sobre os quais nunca apresentou provas. Ao desembarcar em Nova Délhi, na Índia, Lula expressou o desejo de que a polêmica entre Chávez e o Congresso brasileiro seja resolvida logo. Na semana passada, o presidente venezuelano chamou os parlamentares de “papagaios de Washington”, em resposta ao pedido formal aprovado pelo Senado para que Chávez renovasse a licença da emissora RCTV.
Ao justificar o comentário, o mandatário venezuelano disse que apenas havia respondido a uma “grosseria”. Para Lula, não houve grosseria. “Eu não vi nada disso ontem (nos jornais). Eu fiz a resposta e vamos ver o que vai acontecer. Eu acho que o Congresso não foi grosseiro, porque a nota do Congresso pede a compreensão, apenas”, argumentou Lula, reafirmando que não vai procurar Chávez para tratar do assunto. “Deixa eu voltar ao Brasil. Há muita coisa que pode ser feita (para não complicar as relações)”, afirmou.
Na tribuna do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) voltou ao assunto, ressaltando que a defesa da democracia não pode ter fronteiras. Já os líderes do PSDB, Arthur Virgílio (AM), e dos Democratas, senador Agripino Maia (RN), anunciaram em plenário que os dois partidos vão determinar a obstrução da votação do protocolo de adesão da Venezuela ao Mercosul, que está em tramitação, caso Chávez não se retrate publicamente.
As diferenças
Principais discordâncias públicas entre Brasília e Caracas
Integração regional
Chávez embarcou no Mercosul mas defende sua transformação em união política. Já falou em “enterrar” o bloco comercial, que a diplomacia considera como alicerce do processo de integração continental
Etanol
O presidente venezuelano fez coro prontamente a Fidel Castro nas críticas ao acordo Brasil-EUA para expandir a produção de biocombustíveis na América Latina, alegando que condenaria “milhões” à fome no mundo
Banco do Sul
O governo brasileiro mantém sua reticência a apoiar a iniciativa de Caracas pela criação de uma instituição regional para fomentar o desenvolvimento, missão que se sobrepõe à de instituições como o BNDES
Estados Unidos
Enquanto Chávez aposta no confronto com Washington, reeditando uma visão de mundo bipolarizada, Lula se mantém fiel a uma diplomacia multipolar, em que há lugar para relações amistosas com pólos conflitantes entre si
Bate-boca na OEA
A 37ª Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) se transformou ontem em campo de batalha entre Estados Unidos e Venezuela. A secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, solicitou o envio imediato de uma missão a Caracas para investigar o episódio da não renovação da concessão da emissora privada RCTV. O gesto da secretária foi interpretado pelo chanceler venezuelano, Nicolás Maduro, como “intervencionismo inaceitável” de Washington.
“Pedimos ao secretário-geral que viaje para a Venezuela para consultar todas as partes e apresentar um relatório completo”, sugeriu Rice. “A intervenção da representante dos Estados Unidos constitui um intervencionismo inaceitável nos assuntos internos de uma república democrática e soberana”, respondeu Maduro. Em seguida, ele pediu “respeito” e sugeriu que a OEA crie uma comissão especial “para estudar a violação diária dos direitos humanos nas fronteiras do sul dos Estados Unidos”, em referência à construção de um muro na divisa com o México.
A tréplica não demorou. “Em qualquer assunto, estou certa de que será difícil para qualquer comissão debater, investigar e criticar mais as políticas dos Estados Unidos do que já se faz todas as noites na CNN, ABC, CBS, NBC e em vários canais americanos menores”, provocou Rice. Ela argumentou que nos EUA “os cidadãos têm a garantia de uma imprensa livre e independente”, e concluiu: “Isso é democracia”. A secretária abandonou a sessão, sem ouvir a estocada seguinte de Maduro, sobre violações dos direitos humanos na base americana de Guantánamo, em Cuba.