domingo, 27 de dezembro de 2009

As novas empresas da nova classe média

As histórias surpreendentes de empreendedores que cresceram com a explosão da classe C, que já incluiu 100 milhões de brasileiros

As dimensões são gigantescas e tentadoras para qualquer empresário: 100 milhões de pessoas, ou 52% da população do Brasil, integrantes da nova classe média do País. Um enorme potencial de consumo - e ainda pouco explorado. São famílias que viram sua renda mensal disparar 60% nos últimos oito anos, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea. E, com mais dinheiro na mão, passaram a fazer valer mais seus direitos de consumidores. A exigência aumentou. Mas a oferta de produtos e serviços feitos sob medida para as classes C, D e E, nem tanto. Quem soube aproveitar a virada, tem crescido - e muito - junto com esse mercado.

Os empresários Paulo Tadao, 52 anos, e Hermes Kinshoku, 57, donos da rede de supermercados Ricoy, perceberam que já não se vende mais arroz com feijão como antigamente. Os sócios afirmam que a dupla mais popular do cardápio brasileiro tem perdido cada vez mais espaço na mesa da nova classe média. Mas os comerciantes não reclamam. Muito pelo contrário, eles adoram a novidade, porque a tradicional combinação está sendo substituída na hora das compras por produtos mais caros, como frios, iogurtes e enlatados.

Os sócios souberam tirar proveito das mudanças que desfilavam diariamente nos carrinhos dos clientes e deram um salto na década da classe C. Os comerciantes, que eram proprietários de empórios separados desde os anos 1970, decidiram fundir os grupos em 2000 para ganhar escala, dando início ao Ricoy. Hoje, são 80 supermercados que se concentram principalmente na região sul da capital paulista, em bairros como Grajaú, Guarapiranga e Taboão. A rede fecha o ano com faturamento de R$ 1,2 bilhão, 49% maior que o de 2008.

"Trabalhamos para a base da pirâmide", diz Tadao, com satisfação. E não é para menos. Os sócios chamaram a atenção do mercado ao anunciar, em maio deste ano, que a rede dividiria com o Carrefour a compra do grupo Gimenes, do interior de São Paulo. Os R$ 15 milhões investidos na aquisição garantiram a presença da rede além das fronteiras da região metropolitana.

O orgulho que Tadao e Kinshoku, originários da classe C, têm do negócio que construíram é o mesmo da dentista, e hoje também empresária, Carla Renata Sarni, 36 anos. Ela é dona da rede Sorridents, gigante de serviços odontológicos voltada para os segmentos C, D e E. São 110 clínicas em funcionamento em dez Estados, considerando unidades próprias e franquias, com faturamento total de R$ 100 milhões por ano. E a meta é chegar a 200 unidades em 2013.

Tanta bonança nasceu em tempos difíceis, como conta em detalhes a jovem empreendedora. No início, a cadeira de dentista era das antigas; subia e descia com a ajuda de uma alavanca manual. Mas estava de bom tamanho para começar o sonho, em 1995. Na sala alugada em cima de uma padaria na Vila Cisper, zona leste de São Paulo, entre os bairros da Penha e Ermelino Matarazzo, a dentista recém-formada, de 21 anos, atendia, em média, 300 pacientes por mês. Os clientes faziam questão de esperar para se consultar com ela. "Às vezes, tirava dinheiro do meu bolso para comprar um material melhor; nunca abri mão da qualidade e isso atraía clientela", diz.

A expansão foi rápida, no ritmo do espírito empreendedor de Carla. Depois de conseguir comprar a tal cadeira para atender na Vila Cisper, vieram outras quatro, já mais modernas, instaladas em salas vizinhas em cima da mesma padaria. Em um ano e meio, não havia mais espaço para crescer ali e Carla deu o primeiro grande passo: com financiamento, construiu a primeira megaclínica da Sorridents no bairro, com 12 salas e alta tecnologia. Hoje, todas as unidades da rede contam, diariamente, com profissionais de 19 especialidades.

Assim como seus pacientes - e como Tadao e Kinshoku, sócios do Ricoy - Carla vem de uma família sem muito poder aquisitivo. Para ajudar a pagar a faculdade em Alfenas, Minas Gerais, a estudante vendia roupas na escola, mesma atividade desempenhada pela mãe bem longe dali, em Pitangueiras, cidade de 30 mil habitantes perto de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. "Nunca tive vergonha, ao contrário. Quando fiz minha especialização, já com dois anos de formada, vendia roupas no hospital", conta.

As histórias de perseverança são marcantes nos relatos dos empresários que vieram da classe C e estão crescendo com ela. No Rio de Janeiro, Heloísa Helena Assis, conhecida como dona Zica, 49 anos, hoje proprietária de uma rede de dez salões de beleza que vai faturar R$ 80 milhões em 2009, conta que, para começar o negócio, precisou envolver toda a família. O marido teve que entrar com o dinheiro da venda de seu fusca e, além disso, usar as economias que, até então, estavam destinadas à festa de casamento do irmão caçula, Rogério, hoje um dos sócios do negócio.

Rogério, aliás, costumava ser a cobaia da cabeleireira, há 16 anos. Então empregada doméstica, dona Zica sonhava ter cabelos esvoaçantes. Com fios crespos, ela não se cansava de misturar cremes em bacias com colher de pau em experiências no quintal de casa, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio, à procura da fórmula ideal para domar a cabeleira. Conseguiu bem mais que isso. A rede Beleza Natural faz hoje cachos que balançam com o vento, dignos de protagonista de novela das oito, em cerca de 70 mil mulheres por mês no Rio de Janeiro, em Vitória e Salvador. "Setenta por cento das brasileiras têm cabelos crespos, mas não imaginávamos que chegaríamos tão longe", confidencia dona Zica.

A cabeleireira constatou no próprio negócio o espantoso potencial de consumo da nova classe média - definida pela Fundação Getulio Vargas (FGV) como as famílias que ganham por mês entre R$ 1.065 e R$ 4.591. Mas os números certamente impressionariam empresários de multinacionais.

A expansão acelerada dessa faixa de consumidores tem sido observada de forma simultânea em todas as economias emergentes, principalmente na China e na Índia, além do Brasil. A explosão teve início há cerca de dez anos e, segundo um estudo do Goldman Sachs, deve continuar pelas próximas duas décadas. O banco de investimento calcula que, até 2030, mais dois bilhões de pessoas terão se juntado à classe média global. Hoje, estima-se que quatro bilhões integrem as classes C, D e E no mundo todo.

O tamanho das perspectivas tem levado grandes empresas a promover fóruns mundiais para discutir as melhores estratégias de aproximação da classe média e até o desenvolvimento de produtos que atendam demandas específicas desse grupo - cujas particularidades variam conforme o local e as condições sociais em que vivem. E, num país gigantesco como o Brasil, as diferenças são gritantes de um Estado para outro.

De olho nessa deficiência de comunicação entre as grandes companhias e os consumidores - e no potencial de negócio que isso representaria -, os publicitários André Torretta, 44 anos, e Carol Escorel, 34, ambos com experiência no mercado de propaganda tradicional, abriram, há um ano e meio, A Ponte Estratégia, consultoria de marketing especializada nas classes C, D e E. A empresa tem um método de trabalho diferente, com intuito de desenhar um perfil mais realista dos consumidores. Essas informações são vendidas a 19 clientes, como AmBev, Claro, Casas Bahia e Campari.

Uma das estratégias da consultoria é capacitar e contratar integrantes das próprias comunidades pesquisadas - como em Paraisópolis e no Capão Redondo, na periferia de São Paulo - para que eles fotografem e filmem com câmeras portáteis o ambiente em que vivem. Esses colaboradores são chamados de antenas. "Com isso, descobrimos costumes e lugares com ótimo potencial para publicidade que jamais poderíamos imaginar mesmo indo pessoalmente aos bairros.

Ser de fora da comunidade é um limitador", diz Torretta. Um resultado prático desse trabalho para a Campari, por exemplo, foi o patrocínio, com publicidade, de um campeonato de futebol de várzea em Paraisópolis em meados deste ano com a marca do conhaque Dreher. Nos três meses de competições, o público da Copa da Paz chegou a nada menos que 23 mil pessoas.

Além do volume expressivo de consumidores em potencial, a capacidade de pagamento de dívidas da classe média também interessa aos empresários. Segundo a Serasa Experian, o índice de qualidade de crédito nessa faixa está em 83,7, acima da média do país, de 78,2. Francisco Valim, atual presidente da instituição, e que assume em 1º de janeiro de 2010 o comando da Experian para Europa, Oriente Médio, África e América Latina, acredita que esse índice deve melhorar ainda mais nos próximos anos, a partir da redução das assimetrias na avaliação do crédito no Brasil. Uma das formas seria por meio do cadastro positivo. "As instituições que oferecem crédito teriam como avaliar melhor o risco, o que reduziria o juro dos empréstimos e incluiria mais pessoas no sistema financeiro do País", diz Valim.

Carla Renata Sarni, dona da Sorridents,

de serviços odontológicos, com faturamento anual de R$ 100 milhões

O maior acesso ao crédito, ressalta o executivo, é fundamental à continuidade da expansão do consumo no Brasil. Seria mais um fator de impulso a negócios como o Ricoy, a Sorridents, o Beleza Natural em todo o País. E também a General Brands, de Isael Pinto. Ainda hoje, aos 60 anos, o empresário trabalha 12 horas por dia em contato com as classes C e D - exatamente como fazia quando subia a pé a Vila Socó, em Cubatão, para vender suco em pó da marca Q-Refresco na década de 1970. Trabalhou para a empresa por 20 anos e saiu quando ela foi comprada por uma multinacional. "Eu subia o morro para vender produtos para essa turma quando ninguém nem conseguia catalogá-la como classe", conta.

O esforço foi recompensado. O empresário começou a fabricar os próprios refrescos em 1997 e, atualmente, a General Brands é a maior empresa brasileira da área de refrescos em pó. Seus produtos concorrem com marcas como Tang, da gigantesca Kraft Foods, e Mid, da multinacional Ajinomoto. E a companhia de Isael Pinto fecha 2009 com chave de ouro. Depois de crescer 20% em relação a 2008, o que levou o faturamento anual para R$ 200 milhões, a GB anunciou, há um mês, a criação de uma joint venture com o grupo Vencedor, do segmento lácteo.

A meta é que a nova empresa passe a faturar R$ 500 milhões em 2010 e R$ 1 bilhão nos dois anos seguintes. Mais um exemplo do interesse crescente do empresariado na classe média vem da indústria de chocolates. O grupo CRM, dono da franquia Kopenhagen, referência em chocolates finos, e da marca Dan Top, lançou em janeiro deste ano a rede Brasil Cacau, também de franquiados, para atender especificamente o público C. Para dar conta da demanda, foram investidores R$ 80 milhões em uma nova fábrica em Extrema, sul de Minas Gerais.

André Torretta, com a sócia Carol Escorel,

da Ponte Estratégia, consultoria de marketing especializada nas classes C, D e E

A Brasil Cacau oferece 120 itens de chocolate - entre tabletes, bombons e trufas - misturados a matérias-primas tipicamente brasileiras, como o doce de leite e a banana. Os produtos são feitos de forma mais industrializada que os da Kopenhagen, numa linha de produção. E, para o consumidor, é principalmente o preço que diferencia as marcas. A trufa da Brasil Cacau custa R$ 1,20, enquanto a da irmã mais rica sai por R$ 3,80.

A expectativa do CRM era inaugurar 50 unidades este ano, mas já foram abertas 64, sendo 11 lojas próprias. E as metas de crescimento são audaciosas. A intenção é chegar a 500 lojas espalhadas pelo País até 2011. "Existe uma demanda reprimida muito grande", diz Renata Moraes Vich, vice-presidente do grupo. Assim como a Brasil Cacau, General Brands, Ricoy, Sorridents e Beleza Natural são nomes talvez ainda pouco divulgados, mas já muito conhecidos de milhares de pessoas de uma nova classe média de 100 milhões de brasileiros.Isto É

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