O sistema penal brasileiro, por suas ineficiências, está inventando o crime perfeito – aquele que, se imaginava, existia só na ficção. Eis os fatos: ao meio-dia do 1o de junho de 2004, 12 homens armados de fuzis, submetralhadoras, pistolas e granadas preparavam a invasão da Penitenciária 2 de Franco da Rocha, município da região metropolitana de São Paulo. Eles pertenciam à “tropa de elite” do Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminosa que domina os presídios paulistas e aterrorizou São Paulo dois anos atrás.
O objetivo da invasão era resgatar um comparsa e soltar todos os 1.279 detentos. A polícia descobriu o plano, invadiu o esconderijo, envolveu-se num tiroteio com os bandidos, matou um deles e prendeu dez. Agora, apesar de terem sido presos em flagrante e de não haver dúvidas sobre seu caráter perigoso, os dez integrantes da “tropa de elite do PCC” vão ganhar a liberdade e voltar às ruas, porque o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu conceder habeas corpus aos acusados.
Por todos os aspectos, a decisão parece absurda. Mas, juridicamente, ela é inquestionável, segundo atestaram advogados criminalistas, promotores e juristas. Os dez réus passaram quatro anos na cadeia, mas não foram levados a julgamento, porque a instrução do processo, que deveria durar 81 dias, não foi concluída. “O STF só cumpriu a lei. É contra a lei manter alguém tanto tempo preso sem um julgamento”, diz o ex-juiz Luiz Flávio Gomes, professor de Direito Penal.
Na sentença em que concedeu o habeas corpus, o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, mostrou a gravidade das acusações e indícios que pesam sobre os réus. Mas argumentou que as falhas do Estado tornaram inevitável a decisão de beneficiá-los com o habeas corpus. Segundo Britto, o julgamento não foi concluído porque audiências foram canceladas ou adiadas em razão da falta de escolta policial para garantir segurança ao transporte dos réus do presídio para o fórum. Uma das audiências da instrução chegou a ser suspensa quando os presos estavam no fórum, por causa de uma denúncia de um plano para resgatá-los. “Isso mostra uma ineficiência insuportável do Estado na contenção da criminalidade”, diz a antropóloga Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Violências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O caso da “tropa de elite” do PCC é apenas o paroxismo de uma situação comum no sistema penal brasileiro, diz o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, ex-secretário da Justiça e da Segurança Pública de São Paulo. “Tem muita gente presa há tempos sem ser julgada. Processos ficam emperrados porque não é possível fazer audiência por falta de escolta.” Apesar de contar com cerca de 2 mil homens para fazer a escolta de presos, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sofre com o excesso de demanda e o custo dessas operações – muitas altamente arriscadas por causa da periculosidade dos presos. Só neste ano, segundo dados da Secretaria, foram feitos 53.658 escoltas e 215 mil transportes de presos. De acordo com um levantamento feito pelo deputado federal Otávio Leite (PSDB-RJ), só São Paulo gasta R$ 700 milhões por ano com escoltas de presos solicitadas pelo Judiciário. Isso equivale a todo o gasto do governo federal em 2007 com a distribuição de coquetéis anti-aids no Brasil inteiro.
Há uma solução tecnicamente avançada e barata, que não exige a escolta de presos por vias públicas, com a mobilização de centenas de homens: o interrogatório por videoconferência. “Transportar presos perigosos é um risco e não faz sentido botar um exército na rua para realizar uma audiência”, diz Gomes. Países como Estados Unidos e Itália adotam a videoconferência. Em Portugal, ela consta do código de processo penal. Em São Paulo, desde 2005 são feitos interrogatórios por videoconferência.
No ano de 2007, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, foram feitas 1.472 audiências em que presos foram interrogados dessa forma no Estado. Mas a prática não foi regulamentada por lei. Há três projetos em tramitação no Senado, com propostas de regulamentação da videoconferência. Mas não há previsão de quando serão votados. Enquanto isso não ocorre, o interrogatório a distância é contestado por advogados. Eles argumentam, com base numa convenção internacional de direitos humanos, firmada pelos países das Américas em 1969, que os presos têm direito a ser conduzidos à presença de um juiz. O STF só vai se manifestar sobre a legalidade da videoconferência quando julgar um pedido de habeas corpus movido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em nome de um homem, preso em flagrante, acusado de tentar roubar um celular, em 2005 – e interrogado por videoconferência.
O caso da “tropa de elite” do PCC revela ainda a inércia do poder público, que age burocraticamente e não encontra solução para os problemas do sistema penal brasileiro, que se arrastam há anos e só se tornam mais graves. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, há 133 mil pessoas nas prisões brasileiras, ou 30% da população carcerária, em situação similar à dos integrantes da “tropa de elite” do PCC – em regime de prisão preventiva.
O presidente do STF, Gilmar Mendes, afirmou que o número de presos provisórios aumentou 88%, entre 2003 e 2007. Isso mostra que também aumentou o tempo para a coleta de provas nos processos. Apesar desse quadro, que exige medidas urgentes, o país ainda debate, 12 anos depois da primeira experiência de videoconferência, se ela é legal ou não. “Todos os Poderes estão acomodados e têm sua parcela de culpa”, diz Gomes. “O Legislativo não aprova a videoconferência. O Executivo não providencia a escolta. E o Judiciário não toma providências para obrigar a apresentação dos réus.” É uma situação exasperadora.