"De agora em diante, os milhões de católicos brasileiros devem acreditar em Deus e na virgindade de Maria, evitar a carne na Sexta-Feira Santa e repudiar a transposição do Rio São Francisco"
A greve de fome do bispo Luiz Flávio Cappio contra a transposição do Rio São Francisco está se transformando numa maiúscula palhaçada – com todo o respeito aos palhaços profissionais. No início da greve de fome, tudo se resumia a um protesto meio biruta do bispo, que, com o mesmo propósito de impedir as obras de transposição do rio, já fizera jejum por onze dias em 2005. Depois de uns dias a mais e uns quilos a menos, o bispo subiu o tom: denunciou a súbita existência de uma "ditadura declarada" no país e informou que sua saúde era desimportante e o fundamental mesmo era "o estado de saúde da democracia brasileira". (O leitor já reparou que, hoje em dia, qualquer um que levanta uma bandeira, ainda que prepotente e totalitária, sempre o faz em nome da democracia?)
Pois, enquanto o bispo transitava da condição inicial de mártir do rio para a de mártir da democracia, deu-se o lance triunfal da pantomima: a direção da CNBB, entidade que reúne a nata do clero católico, lançou uma nota conclamando "os cristãos e pessoas de boa vontade" a se unirem "em jejum e oração" ao bispo em "solidariedade à causa por ele defendida". Ou seja: a cúpula da Igreja Católica ficou oficialmente contra a transposição do São Francisco. Mas, engraçado, não se viu nenhum bispo da CNBB entrando em greve de fome.
Qualquer brasileiro – padre, pedreiro, médico ou bombeiro – tem o direito de achar o que quiser da transposição do São Francisco, mesmo debaixo da "ditadura declarada". O cômico é que o tema esteja sendo tratado como se fosse um dogma do catolicismo. É mais ou menos como dizer que, de agora em diante, os milhões de católicos brasileiros devem acreditar em Deus e na virgindade de Maria, evitar a carne na Sexta-Feira Santa e repudiar a transposição do rio. Será só a do São Francisco ou a de qualquer rio? Afetaria o Rubicão? O Amazonas? Tigre e Eufrates? Haverá uma encíclica papal prescrevendo sobre transposições de rios?
Com todo o respeito aos católicos, profissionais ou não, a coisa evoluiu para um pastelão monumental – mas, no fundo, faz um tremendo sentido. É, mais uma vez, a Igreja Católica se metendo onde não é nem pode ser chamada. Pode-se ser contra ou a favor da mudança do curso do São Francisco, mas certamente isso não é uma decisão de natureza católica, atéia, budista ou agnóstica. Nem de fé hidráulica.
Ao entrar com seu peso institucional num tema que não lhe diz respeito como guardiã da fé católica, a Igreja volta a exibir sua propensão a tutelar a todos, policiar a todos, e não apenas seu rebanho – como faz no caso do aborto, do casamento gay, da pílula do dia seguinte, das células-tronco... Quando isso acontece de modo discreto, já é inconveniente, mas nem todo mundo nota. Quando vem acompanhado de greve de fome e conclamações ao jejum nacional, vira fanfarra.