segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O problema do pobre


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Nenhum dos argumentos catastróficos contra a CPMF se confirmou. O que é inegável é que ela é um indicador da sonegação
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QUANDO OCUPEI a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (1979 a 82), chamou a minha atenção a diferença gritante entre o número e a qualidade dos centros de saúde no interior e os existentes na Grande São Paulo. Era difícil entender que os municípios do interior, com 49% da população do Estado, tivessem 549 centros de saúde -quase a totalidade- em prédios especialmente construídos, e a Grande São Paulo, com 51% da população, tivesse 257, dos quais só 54 especialmente construídos. Os demais ocupavam casas alugadas, totalmente inadequadas, na periferia da capital e em cidades-dormitório.

A perplexidade começou a se desfazer quando resolvi atender a convites para ir a assembléias populares, convocadas pela população, apoiadas nas comunidades eclesiais de base. Eram reuniões agressivas e difíceis, mas me ensinaram aquilo que todo homem público deve incorporar. Ficou claro, para mim, que os pleitos eram simples e legítimos, como ter onde vacinar seus filhos -e não tinham!

Foi a partir daí que criei a frase: "O grande problema do pobre não é ele ser pobre, é que o amigo dele também é pobre!". Ele não tem amigo que fale com quem decide, que marque uma audiência, que o ajude a elaborar um projeto, que negocie financiamento. Ele está confinado em áreas pobres, com deficiência de saneamento básico, problemas de segurança, transporte, educação, saúde, lazer etc. Isso nos moveu a elaborar o Plano Metropolitano de Saúde: propusemos construir 490 centros de saúde e 40 hospitais nas áreas mais carentes. Passados 25 anos, menos de dois terços da proposta foram construídos -e a população saltou de 12 milhões para 18 milhões de habitantes.

Quando, em 1999, estudei a distribuição dos leitos hospitalares na cidade de São Paulo, com 10 milhões de habitantes e dividida em 96 distritos, a situação continuava da maior gravidade. Em 25 distritos, com 1,8 milhão de pessoas, existiam 13 leitos por mil habitantes, concentrando os maiores e melhores hospitais; nos outros 71 distritos, onde estavam 8,2 milhões de pessoas, existiam apenas, na média, 0,6 leito por mil habitantes.

Essa realidade perversa -menos de 20% da população tem todos os recursos mais modernos, enquanto 80% sofrem todo tipo de restrições- é difícil de ser aceita como razoável. Por isso venho, há muito tempo, tentando convencer os que vivem com conforto e com os mais modernos recursos de saúde à sua disposição de que a distribuição dos recursos é injusta e não pode ser perpetuada.

A discussão sobre a prorrogação da CPMF mostra claramente isso. A parcela mais bem aquinhoada da sociedade -a que financia as campanhas políticas e sustenta a mídia- lança mão de todos os recursos para subitamente constranger o governo a abrir mão de cerca de R$ 40 bilhões, quase a metade destinada ao SUS, e não se constrange de induzir pessoas que dependem desses recursos a assinar listas e mais listas, convencendo-os de que estão sendo explorados.

Não tenho dúvida de que o chamado excesso de arrecadação ocorre porque a eficiência da Receita, nos três níveis de governo, graças à informática e aos cruzamentos possíveis, está resgatando parte da sonegação, que permitiu a escandalosa concentração de renda existente no país.

Todos os argumentos contra a CPMF vêm sendo repetidos desde quando a propusemos, em 1995. Nenhum dos argumentos catastróficos se confirmou. O país nunca exportou tanto, o saldo comercial vem ano a ano crescendo, a dívida externa, que em 2002 era de 43% do PIB, é hoje de 14%. As reservas do Banco Central atingiram inacreditáveis US$ 170 bilhões, a taxa de inflação é a mais baixa dos últimos 30 anos e a indústria automobilística produziu neste ano, até aqui, incríveis 2 milhões de carros. Portanto, não se confirmam os prejuízos apregoados. O que é inegável é que a CPMF é um indicador da sonegação.

Quando de sua regulamentação, foi proibido, na lei, o cruzamento de informações para efeito de Imposto de Renda, afinal revogado quando o secretário da Receita à época mostrou que, dos 100 maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago Imposto de Renda e que existia microempresa -que, para ser micro, não podia movimentar mais que R$ 120 mil/ano- que chegava a movimentar R$ 100 milhões/ano. O simples cruzamento de informações elevou a arrecadação de cerca de R$ 7 bilhões para mais de R$ 20 bilhões/mês.

Quero crer que a luta pela extinção da CPMF, isoladamente, não tenha relação com o fato de ser um eficiente indicador de sonegação, mas esteja vinculada à idéia -para mim, equivocada- de que a carga tributária é muito elevada e toda redução é bem-vinda. Sou dos que acreditam que a carga tributaria é elevada para os que ganham pouco e baixa para os que têm muito, daí a concentração de renda.

Melhor seria se o esforço que está sendo feito para extinguir a CPMF fosse dirigido para uma discussão séria e abrangente da sempre lembrada e nunca conseguida reforma tributária, capaz de compatibilizar os recursos públicos com a riqueza ostensiva de parcela minoritária da população.

Nunca é demais lembrar que todas as convulsões sociais na história da humanidade ocorreram quando a desigualdade se tornou aguda. A distribuição de leitos hospitalares na cidade de São Paulo é exemplo gritante dessa desigualdade, melhor dizendo, dessa desumanidade para com os mais pobres.



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ADIB D. JATENE , 78, cardiologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Foi ministro da Saúde (governos Collor e FHC) e secretário da Saúde de São Paulo (governo Maluf). É idealizador da CPMF.

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