sábado, 15 de dezembro de 2007

Ser coisa, coisamente



O natal deste ano será inesquecível. O comércio já anda esfregando as mãos pensando naquilo que vai vender. Os carros novos não param nas revendedoras. As motocicletas, que são os automóveis da classe C1 e C2, tiveram um crescimento de mais de 30% na fabricação. Telefones celulares, ipods, TVs, computadores, aparelhos de som, até apartamentos-paraíso. Vai ser tudo desovado no natal, está tudo à venda. É um carnaval de ofertas. O consumo é um delírio. Todos estão sendo convidados a consumir sem complexos, "porque a vida é agora", como diz a propaganda do cartão de crédito.
Será que o país ganhou na mega-sena acumulada e eu não fiquei sabendo? Nada disso. Continua não havendo dinheiro, mas agora existe crédito e crédito consignado, aquele que a prestação já vem descontada no salário e ninguém consegue escapar. Qualquer um pode fazer prestação. O velhinho é estimulado a torrar a sua aposentadoria e deixar os remédios que ele precisa para comprar depois. A dona de casa também tem crédito, oferecido nos programas vespertinos do rádio e da televisão. A empregada doméstica também pode passar em qualquer loja, daquelas que proliferaram nos últimos tempos e estão espalhadas por todas as ruas comerciais, para abrir seu crediário na hora, sem burocracia. A molecada usa e abusa do cartão para o desespero dos pais. E até os garçons e ajudantes de cozinha, dos restaurantes da cidade, compraram as suas passagens de avião à prestação, em várias parcelas, para poderem ver as suas famílias no Nordeste, no final do ano.
Evidentemente, a conta vai ter que ser paga, mas a vida é agora e as faturas de cobrança só chegam mais tarde, depois que passou a febre e ficou só a ressaca.
Outra característica dessa nova vertigem consumista é que ela vem acoplada com a responsabilidade social. Pelo menos é o que dizem as empresas que transformaram os jornais em folhetos de lojas de departamentos. A responsabilidade social é tudo. Está lá nos anúncios, em toda a propaganda, eles são responsáveis sociais e ambientais. É uma maravilha. Eles vendem produtos por preços escorchantes que só são percebidos se o incauto comprador faz as contas de quanto vai pagar no final do contrato das prestações. Mas tem responsabilidade social e ambiental. Dizem que estão colaborando para uma maior conscientização da população sobre os seus valores ao mesmo tempo em que ajudam a diminuir as iniqüidades existentes. Os grandes, é verdade, financiam escolas, tem programas de preservação para lugares esquecidos. Os pequenos pagam algumas bolsas de estudo na escola da proximidade, financiam o reboco da escola pública do bairro, tudo com desconto de impostos, e vão dormir tranqüilos, sem o peso de nenhuma culpa guardada no travesseiro, porque ninguém obriga ninguém a consumir.
Então, este será um grande natal. Espera-se que seja o natal da virada, o marco indelével do momento em que o país se equiparou às sociedades desenvolvidas através do consumo sem restrições, sem remorsos e sem nenhuma preocupação com o ridículo. A classe média é sempre a primeira nesse avanço histérico. Vai ao shopping para comprar aquelas coisas bonitas que viu na novela, no programa da Ana Maria Braga e na revista Caras. E também pensa em um natal em Nova York. Ou melhor, em ir fazer compras em Nova York, porque a classe média é muito média e não abre mão de passar o natal com a família comendo bacalhau, peru e rabanada, com espumante rosé. O prazer da classe média deslumbrada é contar no dia da ceia, para os parentes pobretões, como foi visitar aquelas lojas com decorações deslumbrantes, o frio que estava fazendo e aquele musical da Broadway que tinha 100 atores em cena e nenhum conteúdo aproveitável.
É claro que a classe média não vê um centímetro adiante do nariz. E não percebe que esse sistema de coisificação está contribuindo para distanciar cada vez mais o pobre daquele que pensa que tem dinheiro, porque ensinaram a ele que basta ter crédito que tudo se acerta na vida. Mesmo indo à Nova York para as compras não sabe que a cidade dos sonhos tem mais de 1,3 milhões de pessoas - um em cada seis nova-iorquinos - sem dinheiro para comprar comida suficiente e está recorrendo às cozinhas públicas. É isso mesmo, a Coalizão da Cidade de Nova York Contra a Fome, afirma que neste ano aumentou em 20% o número de pessoas nas filas dos locais que distribuem comida gratuita. O Food Bank, uma rede que distribui doações de alimentos também está tendo dificuldades para suprir a demanda.
E a responsabilidade? Ora, a responsabilidade é do aumento da pobreza e dos cortes do governo em programas de saúde e alimentação. Cada vez mais famílias de trabalhadores, crianças e idosos estão sendo obrigadas a enfrentar as filas da sopa como forma de buscar ajuda alimentar de emergência. São 10% da população dos Estados Unidos que não teve comida suficiente em casa em algum momento em 2006 e os dados não são de nenhuma ONG esquerdista, são do Departamento de Agricultura norte-americano.
Nessa festa fantástica que nós vamos assistir com a chegada do natal, o que dizer de tudo isso? Onde estarão os pobres das nossas grandes cidades? Com os narizes esborrachados nas vitrines, para ver o que se passa lá dentro, certamente que não, porque os seguranças não deixam. Nas filas da sopa como em Nova York? Também é difícil porque não existem essas redes solidárias. O individualismo, o fetiche do consumo tardio provoca mais dureza na alma das pessoas. Os que não tem shopping, não tem crediário, nem a rabanada e o rosé estarão vagando por lugares sem nome, sombrios, escondidos que é para não contrastar com a alegria espalhafatosa dos outros.
Por isso, só resta desejar feliz natal a todos.

PS: Também não é demais lembrar de poema do Drummond sobre o tema. Chama-se: "Eu, etiqueta". Vamos a ele:
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebidas
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei,
mas são comunicados aos meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bicos dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu, que antes era e me sabia
tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, incrível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar, ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares, festas, praias, pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum
compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas, que no rosto se espelhava
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco de roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante, mas objeto,
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
peço que o meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

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